Era fim de tarde. Na verdade, umas dezesseis horas. O sol ainda estava claramente visivel até do andar mais baixo do prédio onde eu morava, mas o céu já estava ficando laranja. Por mais que ainda se levassem mais umas duas horas até o pôr-do-sol, esse momento maravilhoso havia se antecipado pra durar mais tempo naquela tarde.
Último ano da escola; não estava sendo fácil. Nada, nada fácil. Eu voltava pra casa, pelo caminho mais comprido. Paro, olho pros dois lados e atravesso a rua, na esquina. Só depois de alguns passos que eu reparo que aquela não era a esquina que devia ter virado. Bom, tudo bem. Eu queria passar pela árvore de amoras que tem na outra rua, mas tive que deixar para a próxima vez. Em troca, passei pelos hibiscos na frente de uma casinha amarela, e aproveitei pra pegar um. Ainda não era época de amoras de qualquer forma; mas já havia algumas vermelhinhas presas nos galhos e algumas no chão.
"Que estranho", pensei. "Não sei porque errei o caminho de casa". Continuei andando e, apesar do calor, e de eu estar de casaco cinza escuro, sentia uma leve brisa geladinha. Não é aquele ar quente, adorado nos dias frios que eu tanto amo e que os outros tanto odeiam. Esse ventinho bagunçava o meu cabelo mal preso, esfriava o meu rosto quente e passava o cheiro do entardecer. Esse cheiro é especial, sempre me lembra de quando era pequena e voltava pra casa no final da tarde, fazia lição de casa, tomava banho, jantava e via TV. Ah, e chorava que não queria ir dormir. Os dias de crianças deveriam ser contados em 30 horas, e não 24.
Não sentia esse cheiro na outra rua. Talvez esta nova rua fosse uma cheia de lembranças. Eu olhei para os lados e não tinham crianças ou casais, apenas uma senhora com um cachorrinho, um senhor com seu chapéu retrô e cabelos totalmente atingidos pelo branco da idade, quase cobertos completamente pelo chapéu.
Continuei andando. Não faltava muito pra chegar em casa. Na verdade, duas esquinas à frente já estaria em casa. Fechei os olhos pra sentir o cheiro do entardecer de novo.
Quando eu os abri, vi um senhor carregando uma bolsa cheia de jornais. Ele passava de porta em porta pra entregar o Jornal do Cambuci. A bolsa parecia bem pesada. O homem carregava-a pendurada num ombro, caído por causa do peso. Ele parecia triste. Ou pelo menos cansado de andar. Mas se olhasse bem pros olhos verdes dele, daria pra ver sua determinação.
"Precisa de ajuda?" perguntei. Ele me olhou com olhar de "por favor!", mas disse "não, muito obrigado", sorrindo. "Mesmo?", reforcei. Ele parou pra pensar um pouquinho e me perguntou se eu estava com horário marcado pra algum compromisso, e eu disse que não.
Então, ele topou a ajuda. Não sei, normalmente não falamos com estranhos, mas ele parecia tão sozinho... Peguei sua bolsa e caminhei ao seu lado. Eu fui pegando os jornais e o entregando, assim ele jogava nas casas. Perguntei por que ele estava fazendo algo tão "solitário", e ele me disse "pra passar o tempo, minha filha. Estou com alguns problemas e queria caminhar por aí. Larguei o meu emprego, prefiro fazer algo ao ar livre. Mesmo que isto não seja um emprego, é um trabalhinho, e posso sentir o vento do final de tarde. Dentro de um escritório não temos isso".
Eu olhei pra ele e olhei pro chão, sempre lhe entregando os jornais. Já tinha virado algo automático. Ele aparentava uns 60 anos. As ruguinhas não escondiam o tempo e o número de experiências vividas por ele.
Não foi fácil arrancar um sorrisinho dele. Era um senhor simpático até, mas parecia perdido em algo terrível. Caminhamos, o trajeto até minha casa foi alterado, estávamos em uma paralela mil vezes mais movimentada. Os carros, com toda a poluição sonora, cortaram os sons do vento, e as fumaças cortaram o cheiro do entardecer e, junto com ele, minhas lembranças.
Homem dos jornais. Era assim que me lembraria dele. Esvaziamos, juntos, a bolsa de jornais por todo o bairro. Subimos e descemos ladeiras, presenciamos, sem perceber, o pôr-do-sol, compartilhamos segredos que só contamos àqueles que sabemos que nunca mais veremos. A brisa leve que antes cantava bem baixinho, agora grita e corta os nossos rostos. Ele me agradeceu, nos despedimos. Eu lhe entreguei a bolsa e fiquei com o último jornal, como uma lembrança do homem dos jornais e daquele fim de tarde poético. Não estava sozinha, assim como ele. Ambos estávamos com nossos pensamentos. Tanto sobre o passado como o presente. Virei na primeira esquina e fui pra casa. Dessa vez, era a esquina certa.
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